quinta-feira, 22 de março de 2012

Seis teses sobre os valores da literatura


Miguel Sanches Neto

Diante da palavra valor, sempre recuamos para não correr o risco de cair em posturas moralistas num tempo em que as artes se posicionaram fora do âmbito moral, por nascerem de seres problemáticos. O medo de reduzir o campo de expressão afasta, portanto, o produtor e o crítico contemporâneos da questão do valor. Tudo tem valor, da cultura de massa ao mais requintado produto do espírito. Ao mesmo tempo, nada tem valor, porque se quebrou a hierarquia de conceitos, confundindo a noção de arte.

Não obstante, pretendo apontar alguns valores da literatura que não podem ser esquecidos, pois desfazem equívocos que mais atrapalham a fruição da arte do que a democratizam.

Não são necessárias grandes exemplificações para demonstrar que vivemos uma idade em que ocorre o predomínio dos espaços coletivos. Existir é existir com, ou melhor, existir-ponto-com. A lógica do consumo criou a necessidade de ser para o outro, e isso nos obriga a um convívio constante - virtual ou presencial. Por todos os meios - tevê, jornais, internet, amizades - somos solicitados para participar de um agora descartável, que sufoca o indivíduo. Temos uma face coletiva e fadada à rápida obsolescência, imposta não só pelas roupas, pelos objetos que somos levados a possuir, mas também pelas idéias que compartilhamos. Os assuntos que pautam nossas conversas são os que foram tratados pela grande mídia, dona absoluta das faces do presente.

Acostumamo-nos tanto a existir dentro de um conjunto que o encontro com nós mesmos ficou impossibilitado. Podemos nos encontrar e concordar com as pessoas mais distantes geograficamente, mas raramente cruzamos o espelho para encontrar quem nós somos.

1. A literatura nos lega, neste imenso pandemônio, um necessário espaço de solidão.

Uma experiência de leitura será sempre um ato solitário, que faz com que o mundo externo, imediato, emudeça e as vozes silenciosas dos livros se sobressaiam.

As conversas em uma academia de ginástica, a televisão ligada num volume alto, o barulho de pesos se entrechocando e de máquinas aceleradas, tudo isso que faz parte da representação de um dos infernos contemporâneos e se torna um ruído longínquo quando um livro nos solicita. Por meio desta atividade solitária, o leitor conversa consigo mesmo e demite o mundo ao seu redor, empreendendo o que Harold Bloom chamou de um processo de "auto-escuta".

2. A literatura é um exercício profundo de imaginação.

A noção de realidade, de realidades múltiplas atingindo-nos em tempo real, nega as potencialidades da imaginação. Mesmo quando falseado pelos meios eletrônicos, o documento, ou a ilusão de estar diante de algo real, tomou o centro de nossas relações. E, com isso, a arte se deixou confundir com informação, com interação, com depoimento.

Se tudo se manifesta ao vivo, se sempre há coisas acontecendo, se o real nos solicita a cada segundo, a literatura se oferece como espaço da solidão e também de imaginação.

A este fenômeno redutor que, contraditoriamente, cresceu com a onda virtual, poderíamos chamar de prisão do realismo, que reforçou a tendência naturalista de nossa cultura, provavelmente fruto da permanência de desigualdades sociais, temporais e culturais. No cinema, na literatura, nas artes plásticas, seja onde for, seguimos a mesma cartilha dos meios de comunicação - o documento no lugar no invento. Ou um invento que se vende como documento.

Daí a urgência de resgatar o valor da imaginação. Diz Carlos Fuentes em Geografia do romance: "O escritor e o artista não sabem: imaginam. A imaginação é o nome do conhecimento em arte". Contra a hegemonia da força centrípeta da informação/documentação, o poder centrífugo da imaginação poética. Seguindo Fuentes, a literatura não deve mostrar nem demonstrar o mundo, mas acrescentar algo a ele, por meio de um "VERBO-EROS-SONHADOR".

Dessa forma, a realidade se torna mais perceptível, ganhando densidade. Sem o verbo imaginativo, a literatura cai na vala comum da informação, perdendo um de seus principais atributos.

3. Literatura é música silenciosa.

A literatura permite o contato com a natureza musical da palavra. Nela, as palavras não estão escravizadas a objetivos claros. Livres, assumem formas e posições inusitadas, entregam-se amorosamente a quem se aproxima delas, permitindo a desordenação e reordenação.

Jorge Luis Borges contou a Adolfo Bioy Casares que estava no metrô quando ouviu uma criança falar. O menino, que se locomovia com os pais, perguntou-lhes:

- Quanto falta para Palermo?
Os pais o ignoraram, continuando sua conversa, surdos à curiosidade da criança que queria chegar logo ao destino, impaciente com a viagem subterrânea. Como toda criança, ela foi insistente e enfática:
- Quanto falta?
O desprezo de seus pais permaneceu. O menino sabia que eles não lhe dariam a menor atenção. Poderia ficar triste, mas riu e tentou novamente:
- Quanto flauta para Palermo?
Diante de tal barreira comunicativa, o menino resolveu transformar o que era curiosidade em jogo e fez a troca da palavra falta (de caráter negativo) por flauta (altamente positiva), criando certo nonsense, o que lhe deu uma alegria solitária. E logo talvez dissesse:
- Quanta flauta?
Constituiu assim um universo lingüístico próprio, independente do mundo que o excluía. Ele se divertia com sua flauta feita de palavras, empreendendo um uso musical da língua, já totalmente esquecido da pergunta inicial.

Borges não conseguia ver o menino - estava com as vistas praticamente inválidas, mas o admirava por ele estar fazendo a passagem da linguagem informativa para a lúdica. O desejo de interação se vê substituído pelo desejo de diversão.

Os comentários de Jorge Luis Borges são certeiros. Aquele "era um momento importantíssimo em sua vida [na do menino]. Estava descobrindo que havia palavras parecidas e que colocá-las juntas era algo divertido. Não: era muito mais - estava descobrindo a literatura".

Esta observação aponta para o fato de a relevância da literatura estar na sua gratuidade, na sua natureza desmontável e remontável.

4. O universo da literatura é poderoso antídoto contra o consumo.

Num tempo em que a satisfação psicológica se dá pelo consumo, a literatura nos coloca em outra freqüência existencial.
A leitura dos grandes livros, hábito solitário e perigoso de vagar pelas páginas impressas, nos livra das ansiedades, dos desejos convencionais.

Quem encontra na arte da palavra um destino opõe-se aos valores fúteis de uma sociedade movida por marcas, ostentações, desfrute inconseqüente dos bens do planeta e do corpo do outro.

Assim, é compreensível que a sociedade capitalista, por meio de seus instrumentos de sedução - a cultura de massa -, mova uma luta sistemática contra a literatura. A gratuidade do texto, visto como um inutensílio, como algo que se basta a si mesmo, é um valor importantíssimo num tempo de excessos de funcionalismo.

5. A literatura nos apresenta um tempo sem margens.

Como o modernismo entronizou um conceito muito nocivo - o da primazia do presente histórico, que torna obsoleto tudo que não o confirme - a pós-modernidade, para contrapor-se a esta concepção, incorporou outros tempos contemporaneamente.

Para o Brasil, onde ainda existem pessoas vivendo de forma primitiva e colonial ao lado da sociedade cibernética, este novo paradigma foi sob medida.

Ocorreu uma quebra da hierarquia temporal. Assim, estilos os mais contraditórios compõem a face da literatura atual. Há uma diversidade muito grande na literatura em circulação. Nunca se produziu tantos sonetos bons como nos últimos anos, logo quando se dizia ser impossível tirar qualquer som novo desta forma poética. E esta revitalização do soneto não nega a produção de uma lírica mais dissonante.

A biblioteca que acumulamos, com livros de diferentes épocas e, portanto, de diferentes estilos, nos ensina que não existe passado nem futuro, e sim um grande e interminável presente.

Finda a idéia do tempo concluído, neste momento que Milan Kundera chamou de modernismo antimoderno, as coisas se movem antes e depois do agora - eis a grande lição borgeana. O presente não mais entendido dentro da lógica progressista de superação, mas como um contínuo.

6. Por transcender o real, a literatura é a história ampliada da humanidade.

A literatura não tem o papel de refletir a realidade, mas de refundá-la em outras bases, digamos, mais aéreas, mais fluídas, e dialeticamente, mais duradouras. Contém o que existiu, o que poderia ter existido e o que talvez venha a existir. A não-necessidade de comprovação amplia os possíveis do texto literário, tornando-o a mais completa tradução da existência, que contempla todas as suas virtualidades, num retrato em permanente estado de reorganização pela interferência imaginativa dos leitores.

Texto extraído do sítio eletrônico da Enciclopédia Itaú Cultural - Literatura Brasileira: http://www.itaucultural.org.br

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